1.ª Expedição Ciêntifica à Serra da Estrela

A 1 de Agosto começava, na estação de Santa Apolónia, a expedição idealizada um ano antes, em sessão de 5 de Julho, por Luís Marrecas Ferreira, Luciano Cordeiro e o médico José de Sousa Martins (estes dois últimos fundadores da Sociedade), que pretendia promover uma estância sanatorial para a cura da tuberculose (que no século XIX, se tornou numa das doenças mais prevalecentes na Europa) em plena Serra da Estrela e a edificação de uma estação meteorológica. A Sociedade de Geografia de Lisboa convidaria também para esta aventura Hermenegildo Capelo, capitão-tenente da Armada Portuguesa e experiente explorador de terras africanas. Embora a Estrela, até então também chamada de Hermínio, não comportasse os perigos de África, representava um território desconhecido e selvagem, cheio de mitos e histórias, a sua experiência seria importante.

E o caso não era para menos. Durante mais de duas semanas eles vão viver a aventura da descoberta de um mundo então selvagem e desconhecido: a serra da Estrela.

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Alguns dos expedicionários – Gentil Martins, Jules Daveau, Hermenegildo Capelo, Emídio Navarro, Júlio Henriques e Martins Sarmento

“A expedição scientifica chegou ao acampamento na serra da Estrella, sitio da Fonte dos Perus, às 8 horas da tarde de dia 4.” Dois dias depois, a 6 de Agosto, era assim que o “Diário de Notícias” relatava a chegada dos expedicionários ao acampamento.À espera de cada um deles estava “uma maca de bordo e duas mantas para cama; uma bacia de barro, para lavagem; uma marmita, para a ração da cosinha; e um cantil, para a ração de vinho”.Rodrigo Affonso Pequito, incumbido pela Sociedade de Geografia de Lisboa de conceber e redigir este espartano “Aviso aos expedicionarios”, fez ainda uma lista de alguns objectos que cada um poderia levar para não se sentir tão incomodamente distante do conforto burguês e da doçura do clima de Lisboa, onde decorria a vida da maior parte destes novos conquistadores: “talher, copo, prato, chavena, toalha de mãos, etc., e bem assim papel, tinta, penas, etc. Recommenda-se aos expedicionarios que será muito necessario que se previnam com fatos de inverno, e objectos de agasalho proprios de viagem, com um bordão de montanha, e com tudo mais que é indispensavel nas excursões desta natureza.Devem tambem ir fornecidos com o tabaco que hão-de consumir durante a estada na Serra.”

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Cântaro Magro – Serra da Estrela – 1881

E foi assim equipados, usufruindo do desconto de cinquenta por cento oferecido pela CP, que este grupo (onde pontuavam alguns dos nomes mais conhecidos do então pequeno mundo da ciência, em Portugal) saíra de Lisboa no dia 1 de Agosto. A própria viagem de três dias, entre a estação de Santa Apolónia, ali à beira do Tejo, e o acampamento no alto da serra, a 1850m de altitude, no local designado Fonte dos Perus, é um vivo retrato do país há 118 anos.Os membros da expedição partiram de Lisboa no dia 1 à noite para chegarem à Guarda já no dia 3, muito antes do amanhecer. Para trás ficara uma jornada em que a morosidade do comboio foi compensada pelo clima de festa que rodeava os expedicionários: “De Santa Comba até Celorico fomos transportados na magnifica carruagem-salão da Companhia da linha férrea da Beira. No Carregal fomos saudados pelos principaes cidadãos da localidade, povo, música, a família Magalhães e seus amigos.”A noite é novamente o momento escolhido para se iniciar a última etapa da viagem: às duas da manhã do dia 4 saem da Guarda. A partir de Gaia têm de passar para o dorso dos cavalos. Param novamente em Manteigas, onde o almoço lhes deve ter dado as forças necessárias para fazerem o resto do caminho, agora a pé “por – como prevenia o ‘Diário de Notícias’ de 30 de Julho – não poderem as cavalgaduras transital-lo”. Quando o dia já começava a findar, instalam-se finalmente no acampamento que fora montado previamente. Entre expedicionários e pessoal de apoio acomodam-se aqui mais de uma centena de pessoas. No dia seguinte, ia começar a descoberta da serra. Das virtudes terapêuticas das suas águas à variedade e singularidade das suas plantas, sem esquecer os vestígios arqueológicos… tudo o que na época constituía as diversas áreas do saber teve os seus representantes nesta expedição. Digamos que a Estrela correspondeu às expectativas e até os céus que a cobrem brindaram com dois dias de trovoada os elementos da secção de Meteorologia que, imbuídos de rigor científico, deixaram de lado o temor que estas fúrias celestes geralmente inspiravam (e inspiram!) a quem as presenciava em tal cenário e se afincaram a descrevê-las com impassível minúcia. A Expedição Científica à Serra da Estrela foi promovida pela Sociedade de Geografia de Lisboa, que convidou para a sua organização Hermenegildo Capelo, um experimentado explorador de África. Se bem que fosse evidente que a serra da Estrela não encerrava os perigos e as incógnitas das vastidões africanas, há que ter em conta que a serra era vista como uma espécie de último e bravio reduto do território continental português. Foi, por exemplo, graças a esta expedição que se desfez a crença de que as águas da Lagoa Escura comunicavam com o oceano. Ao sondarem esse espelho de água, os membros da expedição verificaram que imaginação humana ultrapassa em muito a prosaica realidade: 16 tímidos metros foi a profundidade que atribuíram à lagoa.Imbuídos do espírito positivista que marcava a ciência desta época, aos membros da expedição não interessava apenas dar a conhecer um património ignorado, mas também desmentir muitas das crenças populares acerca da serra, crenças essas que o espírito científico dos expedicionários interpretava como sinais inequívocos da ignorância e da superstição. O voluntarismo dos métodos que adoptam para provar as razões da ciência (que inevitavelmente grafavam com letra maiúscula), ainda hoje é susceptível de causar admiração:
“(…) Os pastores e guias apanharam alguns d’aquelles ophidios que qualificavam como viboras. O snr. Daveau, porém, illustrado director do jardim botanico da Escola Polytechnica de Lisboa, teimava que elles não passavam de inoffensivas cobras. Os serranos sorriam com ar escarninho, zombeando da ignorancia petulante dos sabios de Lisboa; e o snr. Daveau, para os conter no respeito devido à superioridade da sciencia, recorreu a uma demonstração decisiva: offereceu a polpa do antebraço às mordeduras dos reptis. Effectivamente não eram viboras. Os serranos ficaram com cara de asnos, suspeitando que fôra caso de feiticeria.”Daveau é, aliás, um dos nomes emblemáticos desta expedição, não só pela coragem de algumas das suas atitudes, como esta que Emídio Navarro descreve no seu livro “Quatro Dias na Serra da Estrela”, como também pelo facto de integrar a secção de Botânica, uma das que após a expedição produziu um relatório mais rico e detalhado. É de notar que não chegaram a ser publicados metade dos relatórios previstos. Um dos relatórios em falta, por exemplo, é o de fotografia, o que leva a que desta expedição não existam praticamente registos visuais, desconhecendo-se actualmente o paradeiro das imagens colhidas pelo major de cavalaria Torres, responsável pela cobertura fotográfica da expedição.

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Torre, ano 1881

Mas o que levara a Sociedade de Geografia de Lisboa a dedicar, no seu sexto ano de existência, tal atenção à serra da Estrela? É preciso não esquecer que esta sociedade, à semelhança de tantas outras que então proliferavam noutros países, tinha como vocação quase natural os territórios coloniais. A Sociedade de Geografia de Lisboa não foi de modo algum excepção a esta orientação, que era acirrada pelo receio da perda das colónias, no caso português, ou, no caso da Inglaterra, pelo desejo de as expandir. Em 1877, a Sociedade de Geografia de Lisboa tivera o seu momento alto ao patrocinar a travessia do continente africano por Serpa Pinto, Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens, travessia essa que ao ser terminada, dois anos depois, ganharia o estatuto de uma nova epopeia.Por comparação, esta expedição à serra da Estrela surge com contornos muito menos épicos, o que não quer dizer que os seus objectivos fossem desprovidos de interesse nacional.Em primeiro lugar, seria muito difícil, para não dizer impossível, fazer no fim do século passado, fora do território continental português, um levantamento com a presença de tantos especialistas no local, e, se bem que houvesse consciência de que a Estrela não encerrava tesouros, havia a certeza que era necessário avaliar as potencialidades do seu aproveitamento silvícola, hidrológico, agrícola… Em segundo lugar, havia também uma esperança: que os ares da serra ajudassem a combater o então terrível flagelo da tuberculose.Do interesse médico na expedição atesta o facto de o médico Sousa Martins ter integrado a sua comissão administrativa, dirigido a secção médica, e de três anos depois, em 1884, ter voltado à serra na companhia de Carlos Tavares e Emídio Navarro. Este último redige umas crónicas deliciosas desta viagem que publica no jornal “Correio da Noite” e que depois edita sob o título “Quatro Dias na Serra na Estrela”. Embora ressalvando algum exagero no que respeita às motivações da expedição de 1881, Emídio Navarro descreve as razões que geraram o interesse do popular médico pela serra da Estrela: “Sousa Martins, tendo noticia dos dois estabelecimentos suissos que deixo indicados [S. Moritz e Davos], e tendo-os estudado no seu modo de funccionar, começou de ruminar comsigo que a serra da Estrella devia ter condições muito superiores às d’esses estabelecimentos, para em logares idoneos se fundarem n’ella postos sanitarios de indole semelhante. A grande expedição à serra da Estrella em 1881 quasi que teve por fim principal, embora meio disfarçado, uma inspecção à serra, de modo a colherem-se os esclarecimentos necessarios para aquella empreza.” Mas, independentemente dos fins “disfarçados” ou não desta expedição, ela teve o efeito quase imediato de quebrar o mito da serra inacessível. Progressivamente a serra da Estrela vai entrar na rota do turismo e o lugar de mitos e perigos cede perante a benéfica esperança das virtudes terapêuticas dos seus ares.Em 1884, quando Emídio Navarro visita a serra, dá conta, só nesse ano, além do seu, de mais quatro grupos viajando e pesquisando a Estrela. Sem mobilizarem os meios envolvidos na expedição patrocinada pela Sociedade de Geografia três anos antes, estas iniciativas revelam, por um lado, como a viagem de 1881 fora pioneira e como visitar a serra se tornara um pretexto de aventura para aristocratas: “Por Ceia atacou a serra, já este anno, uma caravanna de vinte rapazes, quasi todos de Lisboa, capitaneados pelo snr. conde de Anadia e seus irmãos.” E é um foco de interesse para as elites locais, como o juiz Marques Barreiros, que aproveitou a sua colocação em Gouveia para, talvez num intuito de se distanciar dos crimes dos homens, se reencontrar com a natureza nas alturas da Estrela.Os expedicionários da Sociedade de Geografia de Lisboa deveriam ter regressado à serra da Estrela em 1883, pois a expedição fora concebida como plurianual, mas isso não aconteceu. Tal como também não se realizaram outras expedições propostas, nomeadamente ao Gerês e aos Açores. Tinha chegado a hora do império.

A Serra da Estrela é um palco privilegiado para viver experiências únicas, envoltas da nobreza das paisagens, das encostas vertiginosas, das lagoas e das pedras esculpidas, dos vales glaciares, das águas termais, da pureza do ar e do silêncio cristalino. Discreta, mas contagiante, a serra da Estrela foi uma aventura há mais de um século e, hoje, contém nela o turismo do futuro, onde o científico se revela em toda a extensão do olhar.

Num regime tipicamente militar, em que havia alvorada e silêncio a toque de corneta, as várias disciplinas do conhecimento trabalharam durante 15 dias.

A maior parte dos dados e acervos recolhidos pelas diferentes secções de investigadores (não chegando a ser publicados metade dos relatórios previstos), estão atualmente preservados em arquivos públicos e centros de investigação de algumas universidades.

Os expedicionários da Sociedade de Geografia de Lisboa deveriam ter regressado à Serra da Estrela em 1883, pois a expedição fora planeada como plurianual. O mesmo não veio a acontecer, no entanto esta expedição abriu portas a outras explorações programadas, que embora não chegassem de perto à dimensão da primeira, revelaram-se de grande importância. É disso exemplo a grande descoberta feita em 1883 pelo geólogo Vasconcelos Pereira Cabral que publicou a primeira prova de uma glaciação na Península Ibérica depois de ter encontrado sulcos de glaciares, rochas aborregadas, blocos erráticos e moreias.

Muito ficou por descobrir, mas esta expedição talvez tenha despertado o início das investigações e conhecimento, mas também das caminhadas nesta que é a maior serra de Portugal continental.

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